Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica: Uma Análise Completa e Atualizada

O incidente de desconsideração da personalidade jurídica é um instituto de fundamental importância no Direito Processual Civil e em diversas áreas do Direito, como o Direito Civil, Empresarial e do Consumidor. Ele está regulamentado nos artigos 133 a 137 do Código de Processo Civil (CPC) de 2015 e oferece uma forma processual específica para que, em situações excepcionais, o patrimônio pessoal de sócios e administradores seja utilizado para cobrir dívidas da empresa. Neste artigo, vamos explorar detalhadamente os conceitos, regras, e práticas aplicáveis ao incidente de desconsideração, bem como a jurisprudência recente do STJ, visando uma compreensão aprofundada do tema.

Introdução: O Que é o Incidente de Desconsideração?

A desconsideração da personalidade jurídica ocorre quando a autonomia patrimonial de uma pessoa jurídica é afastada, permitindo que os credores acessem o patrimônio dos sócios para a satisfação de dívidas contraídas pela empresa. Essa medida busca combater fraudes, proteger credores e evitar abusos cometidos com o uso indevido da personalidade jurídica. Com o CPC de 2015, o incidente de desconsideração ganhou estrutura processual específica, garantindo contraditório e ampla defesa para o sócio que terá seu patrimônio afetado.

O Código Civil de 2002, em seu artigo 50, já previa a desconsideração da personalidade jurídica, estabelecendo como requisitos para sua aplicação a existência de desvio de finalidade ou confusão patrimonial. No entanto, a regulamentação processual dessa prática só foi trazida com o CPC de 2015, que instituiu um incidente processual específico.

Fundamentação Legal e Tipos de Desconsideração

1. Princípios de Autonomia Patrimonial

A autonomia patrimonial é o princípio que separa o patrimônio da pessoa jurídica do patrimônio pessoal dos sócios. Esse princípio está consagrado no artigo 49-A do Código Civil, que assegura que os bens e obrigações da pessoa jurídica não se confundem com os de seus sócios ou administradores. Em regra, os sócios não respondem com seu patrimônio pessoal pelas dívidas da empresa.

2. Exceção: A Desconsideração da Personalidade Jurídica

A desconsideração ocorre de forma excepcional, quando há abuso da personalidade jurídica. Essa situação ocorre, geralmente, em duas situações:

  • Desvio de finalidade: Utilização da pessoa jurídica para alcançar fins ilegítimos, desviando-se das finalidades estabelecidas no contrato social.
  • Confusão patrimonial: Inexistência de separação entre os bens da pessoa jurídica e dos sócios, o que caracteriza a fusão ou mistura de patrimônios.

Essas duas situações são regulamentadas pelo artigo 50 do Código Civil e pelo artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Cada um desses artigos reflete uma teoria específica que será analisada a seguir.

3. Teoria Maior e Teoria Menor

Teoria Maior (art. 50 do Código Civil)

A teoria maior exige a demonstração de abuso da personalidade jurídica, caracterizado por desvio de finalidade ou confusão patrimonial. É a teoria aplicável às relações entre particulares e protege o sócio contra responsabilizações injustas, pois exige prova robusta de abuso.

Teoria Menor (art. 28 do CDC)

Aplicável às relações de consumo, a teoria menor é mais flexível, não exigindo a comprovação de abuso para a desconsideração da personalidade jurídica. Nela, basta a demonstração de que a pessoa jurídica está insolvente para que os credores possam acessar o patrimônio dos sócios.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou o entendimento de que a teoria menor também pode ser aplicada a créditos trabalhistas e ambientais, onde o objetivo é proteger direitos de natureza fundamental.

Procedimento do Incidente de Desconsideração no CPC

1. Instauração do Incidente

O incidente de desconsideração pode ser instaurado em qualquer fase do processo: na fase de conhecimento, no cumprimento de sentença ou na execução de título extrajudicial. Além disso:

  • Quem pode requerer: O incidente pode ser suscitado por qualquer das partes ou pelo Ministério Público, caso tenha legitimidade para atuar no caso.
  • Requerimento formal: Deve ser formalizado por meio de petição, demonstrando o preenchimento dos requisitos específicos para a desconsideração (desvio de finalidade ou confusão patrimonial).

2. Procedimento de Citação e Defesa

Após o recebimento do pedido de instauração do incidente, o sócio ou administrador será citado para apresentar defesa no prazo de 15 dias. Essa defesa pode se fundamentar na ausência de requisitos para a desconsideração, bem como na demonstração de que não houve abuso ou confusão patrimonial.

Requisitos de Defesa

O sócio pode argumentar que:

  • Não houve abuso da personalidade jurídica, desvio de finalidade ou confusão patrimonial.
  • A mera insolvência da empresa não é motivo suficiente para desconsideração, em casos onde se aplica a teoria maior.
  • Ele não possui poder de gestão na empresa, o que o exonera da responsabilidade patrimonial, conforme jurisprudência do STJ.

3. Suspensão do Processo Principal

De acordo com o artigo 134, §3º do CPC, a instauração do incidente de desconsideração suspende o processo principal, exceto se o pedido de desconsideração estiver inserido na petição inicial. Essa suspensão permanece até que o incidente seja resolvido.

4. Decisão e Recursos Cabíveis

O juiz decidirá o incidente por meio de decisão interlocutória, passível de agravo de instrumento. Caso o pedido seja deferido, o sócio passa a integrar o polo passivo do processo. Em caso de indeferimento, o processo retorna ao estado anterior, e o sócio não será afetado.

Desconsideração Tradicional e Inversa

  • Desconsideração Tradicional: A parte interessada busca responsabilizar o patrimônio dos sócios pelas obrigações da empresa.
  • Desconsideração Inversa: A pessoa física (sócio) é o devedor, mas o credor pretende atingir o patrimônio de uma empresa da qual o devedor é sócio para satisfazer a dívida.

Provas e Ônus Probatório no Incidente

Aquele que requer a desconsideração deve provar a existência de desvio de finalidade ou confusão patrimonial. É essencial que haja provas robustas, tais como:

  • Extratos bancários e documentos contábeis que demonstrem a mistura de bens.
  • Testemunhas e perícias contábeis, especialmente se há alegação de confusão patrimonial.
  • A falta de comprovação desses requisitos pode levar ao indeferimento do incidente.

Jurisprudência Recente do STJ

O STJ possui entendimentos consolidados sobre o tema, destacando-se:

  1. A responsabilidade do sócio administrador: Sócios que não possuem poder de gestão, em regra, não respondem por dívidas da empresa, exceto se houver prova de participação nos atos que configuram abuso.
  2. Cabimento de Honorários Sucumbenciais: O STJ decidiu que, em casos de improcedência do incidente, o requerente pode ser condenado a pagar honorários sucumbenciais ao advogado do sócio ou administrador indevidamente incluído no polo passivo.
  3. Encerramento Irregular: A simples extinção da empresa, sem baixa formal, não justifica a desconsideração, salvo se comprovado o uso abusivo da pessoa jurídica.

Aplicação da Desconsideração em Juizados Especiais

Embora a Lei 9.099/95 exclua a intervenção de terceiros, o CPC permite a aplicação do incidente de desconsideração nos Juizados Especiais. Essa previsão visa garantir que o credor tenha um meio de atingir o patrimônio dos sócios em situações de abuso.

Exemplos de Aplicação Prática

Defesa no Incidente de Desconsideração

Na defesa, o sócio pode:

  • Impugnar a presença dos requisitos necessários para a desconsideração.
  • Argumentar que a pessoa jurídica mantém a autonomia patrimonial e que não houve uso abusivo da personalidade.
  • Apresentar provas que demonstrem que seu patrimônio e o da pessoa jurídica são rigorosamente separados.

Exemplo: Crédito Trabalhista

Em ações trabalhistas, a aplicação da teoria menor permite a desconsideração se houver insolvência da empresa. No entanto, apenas o sócio administrador pode ser responsabilizado.

Incidente em Execução de Sentença

É possível que o credor, na fase de execução, instaure o incidente ao perceber que a empresa não possui patrimônio suficiente para satisfazer a dívida. Nesse caso, ele poderá requerer que os bens dos sócios sejam atingidos, desde que comprovados os requisitos do artigo 50 do Código Civil.

Assertivas Principais

  1. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica permite que o patrimônio dos sócios seja responsabilizado por dívidas da empresa, em casos de abuso.
  2. A desconsideração se baseia em duas teorias principais: a maior, que exige abuso, e a menor, que se aplica em casos de insolvência.
  3. O CPC exige que o sócio tenha direito ao contraditório, com defesa e produção de provas no incidente.
  4. A decisão que defere ou indefere o incidente é uma decisão interlocutória, que pode ser contestada por agravo de instrumento.
  5. A jurisprudência do STJ estabelece que sócios sem poder de gestão, em regra, não são responsabilizados.
  6. O incidente pode ser aplicado nos Juizados Especiais, mesmo havendo restrições quanto à intervenção de terceiros.

Videoaulas:

  1. Acórdão Publicado: O Que Significa e o Que Acontece Depois?
  2. Desconsideração da Personalidade Jurídica: Procedimentos e Práticas no CPC de 2015
  3. Teoria Maior e Teoria Menor na Desconsideração da Personalidade Jurídica
  4. Aplicação do Incidente de Desconsideração nos Juizados Especiais
  5. Jurisprudência Atual do STJ sobre Desconsideração